Seu Antônio Pedro, o Russo, em frente a sua casa
O cobrador da linha que leva de Engenho da Rainha até Casacadura não repara no rosto de ninguém. Mas esse senhor que acaba de sentar, já avisando que não paga a passagem porque passa dos 70, ele estranhou. Ou, pelo contrário, sentiu já conhecer aquele velho de boca frouxa e o olhar claro. De onde? Não pode ser da TV, não. Não nessa linha, tão pobre e carregada de trabalhador. Não nesse horário, 7:30 da manhã.
Eis que uma senhora abre um sorriso, fala algo que o motor abafa, cata um papel na bolsa, uma caneta, e pede um autógrafo, prontamente concedido pelo senhor da boca frouxa assim que o ônibus pára em outro ponto.
O cobrador não sossega mais. Quem é?
Seu nome é Antônio Pedro de Souza e Silva e tem 73 anos. Mora no Engenho da Rainha, bairro da periferia norte do Rio de Janeiro. Acorda perto das seis da manhã, antes da serralheria que funciona embaixo de seu modesto apartamento começar o barulho. Desce a rua estreita, sem pavimentação, passa por um terreno murado, todo pichado com a sigla do Comando Vermelho, que à noite serve como boca de fumo. Gasta mais ou menos uma hora em um ônibus até o bairro de Cascadura. Mais uma hora no segundo coletivo até Jacarepaguá, onde chega para o batente às 9 da manhã. Rotina dura, e nada incomum para trabalhadores do subúrbio. Não fosse por um detalhe – os autógrafos e a meia hora extra que gasta no caminho para dar atenção aos fãs, ao povo que faz questão de trocar umas palavras, tirar um retrato ou pedir um autógrafo para ele, o funcionário na ativa mais antigo da televisão brasileira.
O cobrador força a memória e lembra! É o rosto que há décadas aparece no fundo de dezenas de programas campeões de audiência. No seu crachá da Rede Globo não há seu nome de batismo. Está escrito o apelido que ganhou em 1946, assim que plugou o primeiro microfone nos fase de testes da TV Tupi – Russo.
Russo, à direita, ao lado da câmera, anos antes de ir para a frente dela
Já recebe aposentadoria, mas nem pensa em sossegar na velhice. Tem quem sustentar. Sua casa é bem humilde e transparece o orçamento apertado. Conversar com Russo em sua sala requer foco – sua memória embaralha histórias, responde coisas que não foram perguntadas, a serralheria no andar de baixo está na ativa e Laryssa, sua “filhinha”, está pedindo atenção. A garotinha de dois anos não tem sangue de Russo, mas ele trata como sua. É filha de sua namorada, Adriana, uma jovem e voluptuosa negra, clássica musa de subúrbio carioca que Russo venera. “Ela precisa de mim, sabe? O ex marido tá na cadeia, um cara perigoso”, revela, sem experiência com jornalistas, em um sábado de folga onde recebeu Fudeus para essa reportagem. A única folga na semana.
Russo e seu patrão, algoz e redentor Chacrinha
Russo “trabalha” desde os 7 anos. Começou a carreira bebendo colheradas de vinagre puro para ganhar alguns réis de quem duvidasse do sacrifício. O dinheiro ajudava sua família de 12 pessoas – o pai, imigrante russo, a mãe, portuguesa, e seus nove irmãos. Adolescente, nem se lembra como, começou a segurar microfones na rádio Tupi. De noite, para interar a renda, fazia bico como trapezista de circo. E foi justamente no trapézio, aos 14 anos, que perdeu todos os dentes ao cair de cara na borda do picadeiro.
Latejando de dor, na hora desistiu da carreira artística. Ganhou a boca frouxa, meio cômica, que até hoje recusa uma dentadura. Até tentou uma prótese, “mas comecei a assobiar, engordar, achei estranho. Dentadura não é pra mim.”
Na época do acidente, com a gengiva inchada, entrou de cabeça no promissor emprego que lhe ofereceram no quinto andar do prédio da Tupi. Iria cuidar do áudio de um novo meio de comunicação que, diziam muitos, substituiria o rádio – a televisão. Em 1946, ainda em circuito fechado, em fase de testes, começou a trabalhar na TV Tupi. Antes de baixar âncora na Globo, passou pelas extintas TVs Rio, Continental e Excelsior, sempre montando microfones.
O anonimato dos bastidores acabou quando em 1965 seu chefe no palco, Chacrinha, notando a boca frouxa, convocou Russo para servir de palhaço no palco e ganhar um extra. Vestiu uma peruca colorida, roupas largas e ajudava Abelardo Barbosa a atirar bacalhau na platéia, a atazanar artistas em playback ou a se submeter sorrindo às piadas sobre sua beleza polêmica. Conheceu e cuidou da voz de muita gente famosa. De Sidney Magal no “Cassino” a Frank Sinatra no maracanã.
Seu maior orgulho, no entando, não são os áudios que armou ou as pataquadas de auditório. Russo não se cansa de exaltar a amizade com seus ex-patrões.
Tem foto com Deus e o mundo, e um álbum que guarda com amor: imagens dos quartos gigantes onde que Xuxa estoca os milhares de que ganhou dos fãs. Ele pode visitar tais salas do tesouro da “nossa rainha”.
Fazendo papel de palhaço com as Paquitas
“Sou famoso. Graças a Deus” – suspira Russo, como que aliviado. Seus olhos tristes ganham vida quando fala das pessoas o reconhecem, do carinho das crianças, dos aplausos que recebe vira-e-mexe em alguma situação pública. Porque quando o assunto é sua vida privada, ele desanima um pouco.
Da Rede Globo recebe por mês cerca de R$2.000. Pelas palhaçadas que faz no Caldeirão do Huck ou em algum outro programa da Globo recebe R$70 de cachê. Mais a aposentadoria de R$800 não daria um salário de fome. Mas Russo não era fácil… “Sou meio marinheiro. Saí por ai fazendo filho” – explica-se o homem que já foi chamado pela imprensa de “o último mata-cachorros”, um farrista.
Quando vai à Caixa Econômica Federal do centro do Rio no quinto dia útil, três mulheres, uma de Niterói, uma de Xerém e uma de Jacarepaguá, estão esperando por ele e pelo dinheiro que sustenta seus cinco filhos. Somando com as contas de seu, Adriana e Laryssa, mais os preparativos para sua próxima filha com Adriana que nascerá em dezembro, não sobra nem para o aluguel – conta que Luciano Huck paga todo mês para ajudar seu contra-regra favorito.
Maria Alcina e Russo – montados na fama no final dos anos 70
Russo não larga seus álbuns de fotos enquanto conta episódios. À medida que relaxa e se convence que a matéria é realmente sobre ele, só sobre ele, envaidece-se um pouco. E, antes de criar empáfia enumerando mais pessoas importantes que são amigos de verdade, seus olhos se enchem de lágrimas.
Para mim foi bem difícil. Choro de velho me arrasa. Aliso seu ombro devagar e digo que realmente, ele é um homem querido. A pele está gasta e larga no corpo miúdo, sua mente confunde nomes e datas, e seus olhos estão turvos, perdidos entre lamúrias e glórias. Seu choro contido com o afago parecia sair da fenda entre a fama e a pobreza, da lacuna nunca superada entre o shwbizz e a realidade de Engenho da Rainha. Entre o amor de Xuxa e o toque de recolher do CV vez ou outra baixa. Enxuga o olho e retoma:
“Todo mundo me fala que eu tenho que me candidatar a vereador. E o pior é que eu acho que seria eleito mesmo.”
O contra-regra que poderia ser vereador microfona a lapela do operário que virou presidente
Mas Russo não quer mudar. Prefere ser pobre, “para se manter simples”. Prefere andar de ônibus, “para não atropelar ninguém”. E prefere fazer campanha para eleger o ator Sterphan Nercessian à câmara carioca para cumprir sua plataforma de ajudar o Retiro dos Artistas [instituição que abriga velhos artistas sem dinheiro] do que buscar ele mesmo uma escora financeira.
“O povo acha que eu tenho uma casa bacana porque eu apareço na Globo, conheço os artistas. Quando descobrem sempre perguntam porque a Globo nunca me deu uma casa, porque eu não ganho aumento, promoção”. – comenta enquanto, à pedido da reportagem, coloca o apertado colar com um pingente de ouro puro moldado com o logo da Globo que ganhou, pessoalmente, de Roberto Marinho. “Aumento só de trabalho.”
Só mais uma pergunta me interessava no fim daquela manhå: Não se sente frustrado, Russo?
“Não, eu sou feliz. Não adianta discutir. Tem que esperar a bondade deles” – suspira novamente, revelando o espírito conformado que parece ser o carrasco e o bálsamo na apertada vida de Antônio Pedro.
Russo e seu apertado colar de ouro da Rede Globo – presente do Doutor Roberto
Fonte: Trip/Divirta-se/Net
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