domingo, 4 de dezembro de 2011

Ode ao Sócrates


Há figuras que parecem destinadas a desferir permanentes socos da cara da hipocrisia, e o Doutor Sócrates, o mais brasileiro dos boleiros, é uma delas. Na segunda metade da década de 70, quando despontou no Botafogo de Ribeirão Preto, Magrão era uma ave rara no mundo das já pasteurizadas entrevistas de jogadores de futebol, amestrados para repetir os mesmos lugares comuns do “respeitamos o adversário” e “esperamos conseguir os três [então dois] pontos”. No Brasil da ditadura, Magrão era uma espécie de anúncio do que podia vir, lufada de ar fresco de uma democracia que, ainda hoje, permanece de realização incompleta.

A Democracia Corintiana talvez tenha sido o mais importante momento político da história do futebol brasileiro. Que me desculpem Olivetto e Travaglini, mas Magrão foi sua cabeça e alma. Sem ele, nada daquilo teria acontecido. Que me perdoem igualmente os são-paulinos, mas aquela vitória do Corinthians por 3 x 1, na final do Campeonato Paulista de 1982, foi um dos maiores atos de justiça dos deuses do futebol. Não porque a equipe alvinegra fosse superior à tricolor. Aliás, era justamente o contrário: o Corinthians tinha um gênio – o próprio Magrão –, um craque (Zenon) e um artilheiro em grande fase (Casagrande). O resto era puro amor à camisa alvinegra: Wladimir, Biro-Biro, Ataliba, o goleiro Solito. No papel, era pouco ante o São Paulo, que tinha certamente a melhor defesa do Brasil: Waldir Perez, Getúlio, Oscar, Dario Pereyra e Marinho Chagas. Do meio pra frente, mais dois craques, Zé Sérgio e Renato, além de Serginho Chulapa, que saiu queimado da Copa de 1982, mas que sempre foi um demônio em Campeonatos Paulistas. Era a Máquina Tricolor, bicampeã estadual de 1980-81, campeã brasileira de 1977, vice-campeã brasileira de 1981.

O jogo foi muito mais difícil que o 3 x 1 te levaria a crer. O primeiro tempo, violentíssimo, terminou em 0 x 0, o terceiro gol corintiano só saiu no finalzinho e o São Paulo teve um gol anulado quando a partida estava 1 x 1. O primeiro gol do Corinthians é uma espécie de alegoria da Democracia Corintiana. Aos trancos e barrancos, capotando, tropeçando, na base do puro amor, Biro-Biro sai na cara do gol e dribla Waldir Perez. Mas é o começo da jogada que importa aqui: Biro-Biro entrega a bola, na entrada da área, para um Sócrates acossado por dois dos maiores marcadores do Brasil, Oscar e Dario Pereyra. De costas para o gol, no meio de um tráfego absurdo, não havia o que fazer com a bola ali, a não ser a jogada que imortalizou Magrão: uma única cutucada de calcanhar e toda a defesa do São Paulo fica paralisada. Biro sozinho na cara do gol.

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